quarta-feira, julho 30, 2008

Valente lutadora

Saiu no DM. Vale a pena a leitura. Um artigo emocionado.

Opinião (28/07/2008)

VALENTE LUTADORA

Quando assumi, junto ao jornalista/cidadão Batista Custódio, o compromisso de uma coluna semanal no Diário da Manhã, o fiz pensando abordar, com relativa freqüência, assuntos ligados às atividades culturais, principalmente deste mundão velho sem porteira que é o meu Goiás.Mas deixo claro, não a cultura de elite, a cultura acadêmica essa deixo-a para os mais sabidos. Prefiro abordar questões e/ou produções daqueles que têm seu pensamento e seus corações mergulhados no chão, e são como caraíbas do Cerrado cujas raízes penetram com profundidade no solo, buscando sustento para sua floração. Não importa que, às vezes, esses produtores sejam até sofisticados e eruditos de qualquer maneira cheiram a terra.Aqui, apontaria como paradigmas nessa conduta, no plano literário, por exemplo, Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis, Carmo Bernardes, Idelmar de Paiva, Augusta Faro, não desmerecendo outros.Por razões de formação profissional e inclinação íntima, tenho um enorme apego à nossa paisagem do Cerrado e à nossa arquitetura histórica minha cidade natal, a Vila Boa de Goiás, a minha Pirenópolis, onde tenho meu ateliê e também terra de uma parte de minha gente.Quando falo nessas cidades não posso deixar de lado o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), órgão do Ministério da Cultura que foi casa de Rodrigo Melo Franco de Andrade, Lucio Costa, Alcides da Rocha Miranda (amigo, hoje sob forma de saudade) e mais outros, inclusive os que estão conduzindo este barco agora José Leme Galvão Junior, José Liberal de Castro e mais gente que acredita no valor da nossa cultura do passado vetorizando o presente.Acompanho, de perto, o trabalho do Iphan no nosso Estado e seu esforço para preservar, valorizar, enfatizar, destacar e apresentar, como lição, os valores arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos dessas cidades que nasceram no solo pedregoso de nosso Cerrado, e que representam exemplos de acomodação quase mimética à natureza. Lição para o presente, lição para um futuro que sonhamos, onde a natureza é reverenciada como fonte de vida e alegria e não prostituída pelo agronegócio.Nossas duas principais cidades que representam a cultura do Brasil nascente, do Brasil mestiço que era o sonho do Darcy Ribeiro, o maior sonhador brasileiro, e que nos legou uma obra literária e um exemplo político que nos remete à utopia de uma nação plenamente realizada na sua cultura autóctone.As cidades citadas não têm arquitetura suntuosa, monumentos conspícuos, obras de arte requintadas, riquezas ou luxos, porque foi o povo que as fez foram mãos de negros, de mulatos, de caboclos e de brancos sertanejos. Eles as modelaram como se modela um pote de barro, como se trança um laço, como se tece a taquara de um cesto ou se costura as tiras de couro de uma precata.Por ocasião da concessão, por parte da Unesco (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura) do título honroso e pleno de responsabilidades de nossa parte, para a cidade de Goiás, em 2001, ficaram bastantes claros os critérios da outorga: sua arquitetura vernácula, humilde e despida e, por isso mesmo, merecedora de nosso respeito.Mas quando se fala de patrimônio histórico, material ou imaterial, de nosso Estado, um nome se avulta, um nome se impõe: Salma Saddi, diretora do escritório do Iphan em Goiás, Tocantins e Mato Grosso.Essa historiadora, descendente de uma ilustre família da cidade de Goiás onde corre o sangue árabe, fez sua carreira funcional no Iphan, percorrendo os vários degraus burocráticos até chegar onde pôde demonstrar, claramente, seu devotamento e carinho pela nosso patrimônio cultural. Salma entendeu a amplitude das responsabilidades do Iphan e tornou-se uma peça importante no quadro cultural do Estado e vem lutando, com vigor sem paralelo, para que os deveres e responsabilidades do órgão que dirige sejam cumpridos em plenitude.Me permitam aqui enfatizar um aspecto histórico desses nossos patrícios de sangue mouro , ainda mais, considerar Salma uma digna representante dessa raça cuja capacidade de trabalho gerou uma expressão de nossa língua mourejar.Nossas ligações com os árabes-mouros iniciaram-se no antigo Portugal dominaram esse país durante alguns séculos, mas o dominaram suavemente, sem nenhuma violência. E isso possibilitou, inclusive a absorção de nossa parte de elementos lingüísticos, hábitos, costumes etc. Na nossa arquitetura residencial da cidade de Goiás temos acusada, de maneira muito clara, a influência árabe os beirais acachorrados, isto é, com peças de madeira de suporte, as alcovas, os muxarabís, a disposição interna, os métodos construtivos de arquitetura de terra, isto é, o adobe, o pau-a-pique, a taipa de pilão etc. Curiosamente essa herança árabe nos veio via Portugal quando os portugueses que para cá vieram foram construir suas casas, e constatando-se, segundo o mestre Lucio Costa que ...é na construção popular de aspecto viril e meio rude, mas acolhedor, das suas aldeias que as qualidades da raça se mostram melhor, percebendo-se, desde logo, no acerto das proporções e na ausência de artifícios, uma saúde plástica perfeita, se é que se pode dizer assim.E o fizeram, então, à semelhança de suas moradas nas suas aldeias em que se acusava a influência moura, além, também de outros traços culturais como a posição recôndita, no lar, das mulheres, refletindo-se na arquitetura com as venezianas das janelas podiam as mulheres ver a rua sem dela serem vistas!O que me impressiona na Salma é, principalmente, sua atenção a qualquer problema cultural que afeta seu Iphan e sua incrível mobilidade hoje está em Goiás, amanhã no Tocantins e depois de amanhã no Mato Grosso.A presença de Salma Saddi no Iphan é, então, o prosseguimento de uma tradição cultural que se inaugurou há muitos séculos atrás na terra lusa e, hoje, ela vem mourejando para nos ajudar a resgatar essa tradição, e assim, seu papel de guardiã de nossa arquitetura vernacular assume aspectos de um simpático acontecimento simbólico.
Elder Rocha Limaé pintor, desenhista, crítico de arte, artista gráfico e arquiteto elderrochalima@hotmail.com
http://v5.dm.com.br/opiniao/valente_lutadora

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