por Patrícia da Veiga
Goiânia - Do alto do sexto andar de um edifício da Avenida Anhangüera, Suelena Ludovico olha para o leste e se depara com várias cabeças circulando ao mesmo tempo. Ela gosta da movimentação do cruzamento com a Avenida Goiás, dos carros passando apressados e da multidão frenética. “Bom é quando sai briga na fila dos telefones públicos”, brinca.
Um busto localizado bem no meio das duas avenidas, todo em bronze e olhando para o oeste, confronta a visão de Suelena, mas ela pouco percebe. De tão incorporado à rotina da cidade, quase nunca é notado.Quando perguntada sobre a importância daquela estátua em um dos pontos cruciais do centro da cidade, Fabiana, a amiga de Suelena que trabalha no edifício do Banco Real, é categórica e não esconde a indiferença: “O único dia em que todo mundo olhou para o Bandeirante foi quando houve uma ameaça de bomba no prato que ele carrega. Foi um pânico danado, mas depois descobriram que era apenas tijolo enrolado em papel. Engraçado!”. Lá em baixo, um senhor que entrega panfletos políticos puxa conversa e logo opina: “Podiam tirar ele daí e pôr um índio. Afinal, ele dizimou muitos de nossos antepassados, era um sanguinário. É até uma vergonha deixar uma estátua dessas na rua”.
Como um herói bravo e contraditório de livro didático, a imagem de Bartolomeu Bueno resiste até a trote de bomba, fuligem de carro, pichação. Mas, resistirá também ao anonimato? Ele foi o primeiro monumento a contar a história da recente capital. Idealizado em 1938 e instalado em 1942, o Bandeirante já nasceu pomposo. Foi um presente de estudantes de Direito da Universidade de São Paulo, que visitaram Goiânia e, entendendo que o vínculo com os “colonizadores” paulistas nunca deveria ser perdido, cravaram sua marca para a eternidade. Na época, Pedro Ludovico Teixeira, então interventor federal de Goiás, inaugurou-o com louros fartos.
No arquivo municipal, uma descrição da época revela o que representava aquele monumento: mais que um pioneiro pelas terras goianas, a representação da coragem de quem aderiu à Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas - a exemplo de Ludovico e seu ego. “Com uma batéia e armado de bacamarte, com a firmeza de seu olhar voltada para o poente, exprime a temeridade de um desbravador, enfrentando o desconhecido, aventurando-se na Marcha para o Oeste”.
Relação política e social que justifica o nascimento de bustos e monumentos em vias públicas. É o que explica o arquiteto Marcus Gebrim, que considera todo mobiliário urbano muito importante para contar a história da cidade, “independente de como ele surgiu”.
No caso do Bandeirante, então, que hoje chama menos atenção que o Eixo Anhanguera e é tão odiado como seu reflexo de “Diabo Velho” (como os índios o chamaram), é bom que ele continue avistando o Oeste e revelando um pedaço de nossa identidade. “Os propósitos de representação mudam e as interpretações também. Tanto é que hoje o Bandeirante é questionado. Contudo, ele nunca vai deixar de contar nosso passado”, afirma Marcus. (P. V.)
Escondidos pela má conservaçãoO Sucesso escolheu três monumentos para contar a história de Goiânia em diferentes fases. Contudo, outras dezenas estão espalhadas pela cidade, é só olhar à volta. De bustos a painéis, vários artistas já interferiram na capital comentando o trajeto do goiano. E o próximo, estima a Agência de Cultura Pedro Ludovico (Agepel), será uma estátua do fundador de Goiânia sobre um alazão. Este trabalho também foi feito por Neuza Moraes, mas nunca saiu do gesso. Hoje, Ludovico montado a cavalo encontra-se numa fundição do interior de São Paulo à espera de verba para sua finalização.Enquanto isso, o que já pode ser apreciado é escondido sobre fuligem e maus tratos.
A esfera das 15 lâminas, por exemplo, nunca teve seu jato d'água funcionando regularmente, não tem sua luz acesa todas as noites, está pichada e enferrujada.
Na Secretaria de Cultura, onde deveria haver um cadastro completo deste e de outros trabalhos, mal souberam informar quem era o autor da obra. (Leia-se desinformação obtidas no Grande Hotel, lembram? Centro de Memória ou de Esquecimento.)
O Bandeirante e as Três Raças foram tombados pelo Estado em 1998, mas, de lá para cá, receberam apenas uma reforma cada um.
15 anos aguardando para ser erguido.Uma esfera formada por 15 lâminas convexas de metal foi instalada na Rua 26, entre as sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, 40 anos depois do Golpe Militar de 1964. Trata-se de uma homenagem a militantes políticos mortos ou desaparecidos entre 1968 e 79, vítimas do regime militar, idealizada pelo jornalista Pinheiro Sales.O monumento conta a história mais recente de Goiânia, uma das capitais que mais reagiu à revolução militar.
Desenvolvida pelo arquiteto Marcus Gebrim, que no fim dos anos 70 entrou para o grupo de anistia política, a esfera de metal tem o propósito de chamar atenção pelas entrelinhas, os detalhes, o que está implícito. Tanto, que muita gente passa e não detecta sua mensagem.“Existem duas formas de um monumento existir: de maneira direta e indireta. Ao conceber a esfera metálica, optei pela segunda, para que as pessoas demorassem mais seus olhares sobre aquelas 15 lâminas, que representam as 15 pessoas homenageadas”, diz Marcus, avaliando sua própria autoria. As folhas de aço brotam e se reúnem em um mesmo ponto, como se representassem a união. Por entre as frestas da bola está projetado para sair um jato d'água, que indica vida, e vários reflexos de luz, que apontam o ideal de mudança.
Atrás da forma, o fato de o projeto de lei que autorizou a menção honrosa ter sido barrado por mais de 15 anos na Câmara Municipal prova seu sentido histórico e político. “Começamos a pensar nessa homenagem em 1986, quando os primeiros petistas foram eleitos diretamente em Goiás. Acontece que, como todo processo de mudança ideológica é demorado, o projeto foi considerado inconstitucional pelo menos três vezes. Mas, hoje a esfera está lá, simbolizando a vida e marcando a luta de pessoas que morreram pela democracia”, comenta Pinheiro Sales, inflamado e com a emoção de quem também foi militante político, exilado e torturado. (P. V.)
A síntese da identidade nacional Heróis anônimos, três pessoas empurram o pilar de uma cidade que nasceu há pouco. Três esculturas, melhor dizendo, com a mesma forma. Este monumento está na Praça Cívica, foi feito pela artista plástica Neuza Moraes a pedido do Rotary Clube Internacional e inaugurado em 1967. Conforme as indicações de Neuza, a obra foi chamada de “Monumento às Três Raças” para contar o quanto o trabalho cotidiano de brancos, negros e índios (na época, a junção considerada síntese da identidade brasileira) foi importante para erguer a capital, em conceito, moral e concreto.Completamente modernista, a lembrança das Três Raças passou, então, a ser o resumo do homem do centro-oeste, localizado bem no coração da cidade. E fala a linguagem comum, porque mesmo que você não seja goianiense e pouco saiba sobre os Goyazes, expressará algo familiar. Isso nós constatamos ao encontrarmos uma família paulistana definindo aqueles homens imortalizados em gesso e granito. “Segura que vai cair!”, brincou Marcos Leite. “Falando sério, parece que eles estão unidos por um único objetivo”, complementa a esposa de Marcos, Elisabete, na intuição. (P. V.)
Fonte: Jornal O SUCESSO - Goiânia - GO
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